«Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Ajudar "pessoas em situação de pobreza", deve ser sempre um remédio provisório. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» Laudato Si: página 88.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Carta Ozanam 1830

Liao, 5 de junho de 1830
 
    Meu caro Materne

   Muito obrigado pela tua carta e mais ainda pela confiança que me testemunhas. Acredito que não tenhas querido lisonjear-me, mas sob condição de, logo que tenhas querido lisonjear-me, mas sob condição de, logo que tenhas oportunidade, me comunicarem as tuas criticas judiciosas e me dares conhecimento dos estimáveis trabalhos que a tua modéstia deprecia em excesso e que mantens secretos.
   De resto, as tuas observações finais levam-me a dar-te em seguida alguns pormenores biográficos sobre os anos que vivi até agora é alguns traços psicológicos sobre a minha pessoa. Sem esta oportunidade, eu talvez ainda demorasse a fazê-lo. Mas porquê tardar ainda a estreitar os laços de uma amizade que pode tornar-se tão bela e tão feliz?
   Meu caro Materne, não são os agradáveis momentos passados contigo, não são as refeições de família ou as pequenas reuniões é de amigos que me censuro. Longe de mim este pensamento. Acredito como  tu que uma distracção suficiente é uma necessidade e que os prazeres puros da amizade são bem permitidos pela lei de Deus.Sem esta oportunidade, eu talvez ainda demorasse a afazê-lo. Mas porquê tardar ainda a estreitar os laços de uma amizade que pode tornar-se tão bela e tão feliz?

   Meu caro Materne, não são os agradáveis momentos passados contigo, não são as refeições de família ou as pequenas reuniões de amigos que me censuro. Longe de mim este pensamento. Acredito como tu que uma distracção suficiente é uma necessidade e que os prazeres puros da amizade são bem permitidos pela lei de Deus. Ainda mais, dir-te-ei, e sem dúvida já o sabes, que não me preocupo com os prazeres de alta roda; deste modo, o que a esse respeito disse nos meus versos deve ser tido como hiperbólico e ampliado pela imaginação: com efeito, tudo isso pode reduzir-se unicamente à ideia de que todos os prazeres com que deparei nunca me ofereceram uma verdadeira felicidade. Também é verdade que vi bastante gente pouco cristã e muito dada aos prazeres e que essas pessoas não eram felizes.
Eis tudo.

   Agora, vou dar-te a conhecer quem tenho sido até hoje. Lê até ao fim, pois é ai que vem o melhor. (1)

   Disseram-me que, quando criança, era muito doce e muito dócil e isso é atribuído à fraqueza do meu temperamento, mas vejo ai uma outra causa. Eu tinha uma irmã, uma irmã muito amada que me ensinava juntamente com a minha Mãe e essas lições eram tão doces, tão bem ministradas, tão apropriadas à minha inteligência infantil que me davam verdadeiro prazer. Em suma, creio que então eu era bastante bom e, salvo alguns pequenos pecadilhos, não me censuro grande coisa em relação a esse tempo. Com sete anos, contraí uma grave doença. Todos julgaram reconhecer que só por milagre me salvei. Não que me faltassem cuidados. Os meus bons pais não deixaram a cabeceira da minha cama durante quinze dias e quinze noites. Sentia-me morrer, no meu delírio, pedi cerveja (N.B.: então gostava dela). E a cerveja salvou-me. Estava curado. Seis meses depois, minha irmã, a minha boa irmã, morreu. partilhei profundamente a dor comum. O Desgosto que eu tive!

Aprendi o latim e aprendendo-o, adquiri malícia. Na verdade, creio que nunca fui tão mau como na idade de 8 anos. No entanto, eram um bom pai, uma boa mãe, um bom irmão que continuavam a minha educação. Nesse tempo, ainda não tinha amigos fora da família. Tinha-me tornado irascível, teimoso, desobediente; se me puniam, reagia contra o castigo, escrevia cartas a minha mãe para me queixar. Era preguiçoso e lambareiro em grau supremo. E desde logo começaram a correr-me na cabeça todas as espécies de más ideias que em vão me esforçava por repelir. Eis o que eu era ao entrar no colégio, com nove anos e meio. Pouco a pouco, tornei-me melhor, a emulação eliminou a preguiça, gostava muito do meu professos, conheci o excelente Balloffet (2), tive sucessos que me encorajaram, estuda com ardor mas, ao mesmo tempo, começava a ter orgulho. Aliás, aconteceu-me trocar sopapos e disparates, etc., etc. Mas tinha mudado muito.

   Foi mais ou menos do mesmo modo quando estive muito tempo doente e obrigado a passar um mês no campo, em casa de uma excelente senhora, onde adquiri muita delicadeza, que seguidamente se perdeu em grande parte.
   Por vezes, desleixava-me um pouco, depois retomava coragem. Foi então que fiz a minha Primeira Comunhão. Dia de felicidade, possa a minha mão secar e a minha língua ficar presa ao céu da boca se alguma vez te esquecer! Tinha então mudado muito, tinha-me tornado modesto, doce, dócil e, infelizmente, tornei-me também um pouco escrupuloso.
Conheces pouco mais ou menos a minha vida após esta época, bastará dizer-te que, depois deste tempo, tornei-me talvez mais trabalhador e permaneci sofrivelmente orgulhoso e impaciente.

(2) Outro amigo de infância de Ozanam.

   Mas é preciso que eu entre em alguns pormenores sobre um período penoso da minha vida, período penoso da minha vida, período que começou quando estava na Retórica e acabou no ano passado. à força de ouvir falar de incrédulos e de incredulidade, perguntei-me porque acreditava. Eu duvidava, meu caro amigo, mas no entanto queria acreditar, repelia a dúvida, lia todos os livros em que a religião era demonstrada e nenhum deles me satisfazia plenamente. Acreditava durante um ou dois meses na autoridade de tal argumentação; sobrevinha uma objecção ao meu espírito, ainda duvidava. Oh! Como eu sofria! Porque queria ser religioso. Espreitei Valla (3). Valla não me satisfez. A minha fé não era sólida e, no entanto preferia acreditar sem razão do que duvidar, porque isso atormentava-me muito.
   Entrava na filosofia. A tese da certeza perturbou-me. Supus um instante poder duvidar da minha existência mas não o consegui. Decidi-me, por fim, a acreditar; pouco a pouco tudo se firmou e hoje creio na autoridade da ideia de causa.
  Durante este tempo a minha imaginação trabalhava; pensamentos criminosos, licenciosos, acabrunhavam-me, contra minha vontade. Queria afugentá-los, mas ocupavam-me muito: o meu respeitável confessor diz que não me inquiete, mas ainda não o consigo, embora eles sejam hoje mais raros. Anima-me que estas ideia não sejam minhas, nem de mim. Pelos menos, é assim que me têm dito.
   Devo no entanto reconhecer que a funesta paixão do amor nada pode ainda sobre o meu coração e que apenas conheço a amizade.
De resto, creio que sempre tive bastante bom coração e amei os meus amigos, que tenho sido habitualmente compassivo para com os pobres, reconhecido para com as pessoas que me fazem bem e sempre sem rancor.

   Eis o que fui, eis a seguir o que sou. Vou falar-te imparcialmente, dir-te-ei tudo, tento o mal como o bem.
   Quando ao mal, reduzo-a a quatro pontos principais: orgulho, impaciência, fraqueza, meticulosidade.
   O orgulho é tudo o que se lhe segue: amor dos elogios, dificuldades em reconhecer as minhas faltas, algumas vezes um pouco de altivez. quanto à impaciência, só se manifesta perante o pequeno irmão, que a excita muitas vezes.Quando digo fraqueza, significo respeito humano, pouca força para manter uma resolução tomada, etc e, quando digo escrúpulo, meticulosidade, quero  referir-me às coisas

(2) Padre José Valla, autor de um manual de filosofia em uso na diocese de Lião.

espirituais e à exactidão dos escritos. Acrescenta a estes defeitos o de zombar um pouco facilmente do próximo e terás o meu lado mau.

   Quando ao que em mim há de bom, aqui vai: o coração que não julgo perverso, a intenção que normalmente é excelente mas verga muitas vezes conforme as circunstâncias, a vontade de bem fazer que em geral me domina. Creio possuir as duas qualidades que fazem um bom francês, patriotismo e lealdade.  Amo muito a minha pátria e tive sempre horror à duplicidade, sou bem fiel àqueles que amei, mas a frieza vinda de um amigo penetra-me a alma, sem no entanto me impedir de o amor sempre. Gosto que me dêem conselhos, mas quero-os amigáveis como os teus; gostaria deles ainda que mais severos. no entanto, quero conservar a minha liberdade e reservar-me o direito de aderir ou não a um conselho dado. Julgo-me agradecido e posso assegurar que guardo bem um segredo. De resto, atenho-me muito à religião, sem ser propriamente piedoso e isso faz que eu possa alguma vez ser ou parecer intolerante. Confesso que gosto do trabalho, mas deixo-me distrair facilmente. Em suma, creio que posso vir a ser ou um homem muito ruim ou um homem muito virtuoso; espero agora ter tomado alturas e ser toda a minha vida pelo menos um bom francês, um bom amigo, um bom cristão. 

   Eis aqui o teu homem, disse-te tudo, abri-te o meu coração, conheces-me inteiramente. Sabes agora se queres continuar a dar-me a tua amizade, quebrá-la ou estreitá.la mais. De qualquer modo, desejarei sempre permanecer e tornar-me cada vez mais teu amigo.

A. F. OZANAM

   Se queres continuar a dar-me a tua amizade, peço-te o favor de não me poupares, de me dares bons conselhos e de nunca seres adulador: sê franco como eu o fui nesta carta, já que te dei o testemunho da minha consciência.

  

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