«Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Ajudar "pessoas em situação de pobreza", deve ser sempre um remédio provisório. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» Laudato Si: página 88.

domingo, 5 de março de 2017

A Hipólito Fortoul e Huchard

   Lião, 15 de Janeiro de 1831

   Meus caros Amigos

   Devo uma carta a Fortoul, a H ... uma resposta e o que queria dizer a um, tinha necessidade de o dizer também ao outro. Aliás, estais suficientemente ligados para não terdes segredos entre vós. Recebeis, pois, apenas uma carta, mas ela será grande ampla, cheia de palavras, senão de pensamentos; tereis uma boa conta. 

   Pois bem, a carta de H ... informou-me de que gozais ambos de muita boa saúde; felicito-vos por isso: a alma esta muito mais à vontade quando o corpo se sente bem disposto e estuda-se com muito maior facilidade, perseverança e resultado quando a dor não acomete de manhã à noite com as suas importunidades. Falo disso com algum conhecimento. 
   Mas, se os vossos órgãos passam bem, se o cérebro está livre, parece, pelas cartas do amigo H ..., ser a vossa alma que sofre, o vosso pensamento que está doente, o vosso coração que se inquieta na expectativa das coisas vindouras: suspensos entre um passado que se afunda e um futuro que ainda não acontece, vós votais-vos tanto para um, afim de lhe dirigir um derradeiro adeus, como para outro, afim de lhe perguntar: quem és tu? E como ele não responde, esforçais-vos por penetrar os seus mistérios, o vosso espírito agita-se em mil sentidos, corrói-se, devora-se e daí resulta um mal-estar invencível, inexprimível. No meio destes trabalhos intelectuais, no meio desta agitação profunda que, como vós, toda a capital experimenta, vós pensais neste pequeno Ozanam, antigo camarada de colégio, hoje pobre praticante de funcionário notarial, magro discípulo da filosofia e quereis saber o que ele pensa, o que pensa em torno dele.
   O que se pensa à minha volta? Confesso que teria bastante dificuldade em relatá-lo. Creio, no entanto, que, falando de modo filosófico, na província não se pensa, ou pelo menos pensa-se muito pouco. Vive-se uma vida industrial e material; cada um trata da sua comunidade pessoal, do seu bem-estar particular; e depois, quando o cavalheiro está satisfeito, quando o cofre-forte está repleto, faz-se política em torno das lareiras ou das mesas de bilhar, fala-se muito de liberdade sem nada compreender do assunto, louva-se a conduta da guarda nacional e das escolas nas jornada de Dezembro, mas ninguém se importa com os protestos, as proclamações dos senhores da Escola de Direito; é-lhes censurado quererem governar o Governo e tentar implantar a sua pequena república no meio da nossa monarquia. A ordem material, uma liberdade moderada, pão e dinheiro, eis tudo o que se quer; está-se cansado das revoluções, deseja-se repouso; numa palavra, os nossos homens da província não são nem homens do passado nem homens do futuro; são homens do presente, os homens da balança, como diz a Gazeta.

   São estas as minhas companhias; e quereis então que vos diga o que penso, eu pobre ananzinho, que apenas vejo as coisas de longe e através de versões muitas vezes enganadoras dos jornais e dos raciocínios ainda mais absurdos dos nossos políticos, como através de uma lupa nociva? Cercado como estou por mil opiniões directamente contraditórias, que assaltam sem cessar os meus ouvidos com os seus argumentos recíprocos, já construí vinte sistemas, dos quais nenhum pode manter-se; fiz cem conjunturas que os acontecimentos vieram desmentir: e agora eis que, cansado de politizar, de conjecturar, vejo mudar a charada em acção e espero que digam bem alto a palavra do enigma.
   Entretanto, ter paciência, ler as notícias para saber simplesmente o que nos sucede, conserva-me tanto quanto possível fechado na minha individual, desenvolver-me à parte, estudar muito, agora fora da sociedade, para depois poder aí entrar de modo mais vantajoso para ela e para mim: eis o plano que tive necessidade de formar, que M. Noirot me encorajou a executar e que vos aconselho a adoptar também meus bons camaradas, pois em consciência nós estamos ainda muito verdes, não estamos ainda alimentados pela seiva vivificante da Ciência para poder oferecer frutos maduros à Sociedade.      Apressemos-nos e, enquanto a tempestade derrubar muitas sumidades, cresçamos na sombra e no silêncio até nos encontrarmos homens feitos, cheios de vigor, quando os dias de transição houverem passado e alguém tiver necessidade de nós.
   No que me diz respeito, tomarei o meu partido, tracei a minha tarefa para a vida e, na qualidade de vosso amigo, devo dá-la a conhecer.
   Como vós, sinto que o passado cai, que as bases do velho edifício estão abaladas e uma terrível sacudidela mudou a face da terra. Mas que deve sair destas ruínas? A sociedade deve manter-se envolvida nos escombros dos tronos derrubados, ou deve antes reaparecer mais brilhante, mais jovem e mais bela? Veremos novos caelos et novam terram? (céus e uma nova terra?). Eis a grande questão.    Eu, que acredito na Providência e não desespero do meu país, como Carlos Nodier, creio numa espécie de palingenésia. (renascimento). Mas qual será a sua forma, qual a lei da sociedade nova?           Não tento decidi-lo.
   No entanto o que eu creio poder assegurar é que há uma Providência e que esta Providência não pôde abandonar durante sei mil anos criaturas racionais, naturalmente desejosos do verdadeiro, do bom e do belo, ao meu génio do mal e do erro; que, por consequência, todas as crenças do género humano não podem ser extravagâncias e que houve verdades da parte do mundo. Trata-se de reencontrar estas verdades, de as desprender do erro que os envolve; é preciso procurar nas ruínas do mundo antigo a pedra angular sobre a qual se reconstituirá o novo. Seria pouco mais ou menos como estas colunas que, segundo os historiadores, foram levantadas antes do dilúvio para transmitir o depósito das tradições aos que sobrevivam, como a arca sobre-nadava através das águas, levando com ela os pais do género humano.

   Mas esta pedra de esperança, esta coluna de tradições, esta barca de salvação, onde encontrá-la? Entre todas as ideia da antiguidade, ou desenterrando as únicas verdadeiras, as únicas legítimas? Por onde começar? Por onde acabar? Aqui detenho-me e reflicto: a primeira necessidade do homem, a primeira necessidade da sociedade são as ideias religiosas: o coração tem sede do infinito.
   Aliás, se há um Deus e se já homens, são necessárias relações entre eles - Portanto uma religião; - por consequências, uma revelação primitiva; - por consequência ainda, há uma religião primitiva, antiga de origem e por isso mesmo essencialmente verdadeira.
   É esta herança, transmitira do alto ao primeiro homem e deste aos seus descendentes, que eu estou interessado em procurar. Desloco-me, pois, através das regiões e dos séculos, removendo a poeira de todos só túmulos, investigando os escombros de todos os templos, exumando tos os mitos, desde os selvagens de Koock até ao Egito de Sesostris; desde os Indianos de Vishnu até aos Escandinavos de Odin. Examino as tradições de cada povo, pergunto-me a sua razão, a sua origem e, ajudado pelas luzes da Geografia e da História, reconheço em toda a religião dois elementos bem distintos: um elemento variável, particular, secundário, que tem a sua origem nas circunstâncias de tempo e de lugar nos quais cada povo se encontrou e um elemento imutável, universal, primitivo, inexplicável pela História e pela Geografia. E como este elemento se encontra em todas as crenças religiosas e aparece tanto mais inteiro, tanto mais puro quanto se remonta a tempos mais antigos, daí concluo que só ele reinou nos primeiros dias e que constitui a religião primitiva. Daí concluo, por consequência, que a verdade religiosa é a que, espalhada por toda a terra, se encontrou em todas as nações, transmitida pelo primeiro homem à sua posteridade, depois corrompida, misturada a todos as fábulas e a todos os erros.
   Certamente protestais, zombais da temeridade deste pobre Ozanam, pensais na rã de La Fontaine e no ridículus mus de Horácio. Como quiserdes! Também eu me admirei da minha ousadia; mas que fazer? Quando uma ideia se apoderou de vós há dois anos e superabunda na inteligência, impaciente por expandir-se no exterior, é possível retê-la? Quando uma voz grita sem cessar: faz isto, eu quero-o! pode-se dizer~lhe se cale?
De resto, comuniquei o meu pensamento a M. Noirot, que muito me encorajou a cumprir o meu plano. E como lhe confidenciei que temia achar a carga demasiado pesada para mim, assegurou-me que encontraria bastantes jovens estudiosos prontos a ajudar-me com os seus conselhos e os seus trabalhos: estão pensei em vós, meus bons amigos. Queria ainda dizer-vos mais coisas, mas a saída do portador da carta não me deixa tempo. Em outra ocasião vos falarei da minha maneira de pensar sobre o São-Simonismo; ele aqui não vinga e em geral não é favoravelmente considerado.
   O meu pequeno irmão Charlot escreveu a H . . ., mas não tenho a sua carta para anviá-la.

   Adeus, (envio) muitas coisas para os camaradas de Paris; para vós, caros amigos, a amizade sincera do vosso companheiro de colégio.

A.F.OZANAM


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