«Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Ajudar "pessoas em situação de pobreza", deve ser sempre um remédio provisório. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» Laudato Si: página 88.

domingo, 7 de maio de 2017

No coração da Mãe

(Peregrinação Anual da Sociedade de São Vicente de Paulo, 
Fátima, abril de 2017)

Vou falar de amor. Vou falar de uma Mulher que, por pura fé, deixou que o seu coração fosse “coberto pela sombra do Altíssimo” e disse que sim ao projeto que Deus tinha para a Humanidade. 
Quem é esta Mulher que, há 100 anos, como agora, nos pede que baixemos as armas e que nos deixemos guiar pela dimensão de infinito que existe dentro de nós? 
A quem pertence, afinal, esta voz que aplacou os medos dos pastorinhos: “Sou do Céu” e que nos toma nos braços e nos pega ao colo e nos diz aquilo que disse a Lúcia naquele dia de junho de 1917:
«Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio, e o caminho que te conduzirá até Deus».
Na nossa vida, Maria é, normalmente trazida pela voz primeira de uma mulher: da mãe, da avó, de uma madrinha…(uma voz de beijo, que as mães, as avós e as tias velhas têm muitas vozes) e está guardada como memória de um tempo doce, de um lugar de ternura, de um refúgio, de um lugar para onde se corre quando se tem medo ou quando se tem vontade de chorar. 
E foi-nos ensinada como Mãe, como aquela que, apesar das nossas fraquezas está sempre pronta para nos receber – e nós rezamos, todos os dias: rogai por nós pecadores; porque Maria é aquela que, na hora de agora e na hora do fim, não nos deixa sozinhos: agora e na hora da nossa morte. 
É Ela que nos recebe aqui. É neste silêncio que veste Fátima de branco que os pastorinhos se encontram com Deus e experimentam a sua proximidade. Fátima representa, hoje, para nós, esse Imaculado Coração e a promessa dessa “janela de esperança que Deus abre quando o homem lhe fecha a porta, como disse o Papa Bento XVI, quando veio aqui em 2010. 
Para os pastorinhos, o coração da Senhora era o santuário do seu encontro com Deus. Este coração é Imaculado. 
Estamos em Portugal. A Imaculada Conceição é rainha desde que D. João IV lhe entregou a sua coroa. 
O povo conhece bem o sentido de proteção que o termo “Imaculado” possui e sabe que “coração” é coisa de dentro, coisa de amor, coisa de mãe. 
E Maria é sobretudo isso: Mãe. E é sempre à procura de colo que vimos aqui: pedir ou agradecer, mas, sobretudo, estar, nesta intimidade de coração com coração com Aquela que, no limiar da morte, Cristo nos entregou, como herança.  
Com as mãos da minha mãe entre as minhas, eu aprendi a rezar a esta “cheia de graça” que é a Mãe de Deus e aprender dela as coisas do coração: a fé, a disponibilidade, o serviço, o silêncio, a fidelidade. 
Talvez por isso, a tenho sentido tão presente, tão companheira, tão participante na minha história. Mesmo nos momentos em que eu tive mais dúvidas, nos momentos em que eu achei que a religião não tinha as respostas que eu precisava, ou que eu queria que tivesse. 
Apesar de ter tentado fugir, e eu tentei algumas vezes, Maria foi sempre um lugar seguro. Sempre. Percebi que podia contar com ela quando a noite me metia mais medo. E senti-a Mãe. E percebi que com a mão dela a segurar a minha, eu nunca me perderia. Se isso já acontecia com a minha mãe… 
São Vicente de Paulo tem uma frase extraordinária: “Nunca se tem Deus como Pai, se não se tem Maria como Mãe”. 
E eu aprendi-a assim. Beijo de Deus à humanidade. Modelo de fé e de vida. Em todos os momentos. 
Vejam:
Naquele dia branco, em que o Anjo se aproximou com o Recado de Deus, Maria disse que Sim e deixou que o seu coração se inundasse de Amor. Na entrega daquele Faça-se, a sua vida mudou, a nossa vida mudou e Ela permitiu que o Plano que Deus tinha para a humanidade se concretizasse. A partir desse dia, Maria deixou de servir Deus, ela passou a viver Deus, num silêncio impressionantemente fecundo.
É num momento de silêncio que Maria entra na História. Ela cala tudo à sua volta, apenas para ouvir o recado de Deus e nem lhe pediu um sinal. Só lhe perguntou o como (Como pode ser isso se eu não conheço homem?), para não errar. Queria obedecer com amor. E só um coração sem mácula pode entregar-se assim.
Ao escutar o anjo Maria traça o 1º passo para quem quer entrar numa relação de intimidade verdadeira e atira-se, deste modo, pno abismo de Deus, sabendo que Ele lhe daria as asas  necessárias quando fosse preciso (porque é preciso ter asas quando se ama o abismo, como diz Thomas Mann, em Morte em Veneza).  
O seu “Faça-se em mim” decidiu, da parte humana, o cumprimento do Mistério Divino e, se tornou, como diz o Papa João Paulo II, na encíclica “Mãe do Redentor”, “sinal de segura esperança”, “o teu refúgio”, como ela própria disse, em Fátima, a Lúcia, e nos diz, a nós, todos os dias.  
Depois, o Coração Imaculado dessa Mulher que o Antigo Testamento já tinha anunciado, como a promessa da vitória sobre a serpente; como a primeira entre todos aqueles que esperam e recebem a salvação vai pôr-se a caminho, vai ter com Isabel. Vai, na sua lógica de mulher que tem Deus no peito, ajudar quem precisa dela. E só o amor permite esse “ir” que os senhores fazem todos os dias. Ao encontro. E Isabel reconhece nela “a mãe do Senhor” e dá testemunho daquela fé que alterou, completamente, o rumo da humanidade – “Feliz daquela que acreditou”. Que acreditou e que ensina a acreditar. Ela foi a primeira que “ouviu a Palavra de Deus e a pôs em prática” e que, mesmo sem entender muitas coisas - a conceção; a pobreza em que o Príncipe da Paz, o Filho de Deus nasceu; a profecia do velho Simeão; a necessidade de fugir para o Egito; as respostas de Jesus, nomeadamente naquele dia do templo, em que, face à preocupação de Maria, ele lhe responde que tinha de tratar das “coisas de meu pai”; a vida pública daquele seu filho que tinham uma maneira diferente de ver o mundo e que falava de amor e de dar e dar a vida pelos amigos; a paixão e a dor de ver sofrer e morrer um filho que, mesmo sabendo que era de Deus e que tinha uma missão a cumprir, lhe  terá custado muito. 
No Imaculado Coração de Maria, mora o silêncio, mora a contemplação. E se escutar é ouvir com o coração, contemplar é ver com o coração, porque, como diz Saint Exupéry, no Principezinho, “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”. 
Nas Bodas de Caná, o Imaculado Coração de Maria volta a desenhar-se como um refúgio, mas também como caminho para Deus. 
Ela está atenta às necessidades de quem tem necessidades.    
- Filho, não têm vinho! 
e vinho é tudo o nos falta: pão, dinheiro, saúde, trabalho, esperança, coragem, um sentido para continuar aqui. 
E, depois,  indica o caminho. 
- Fazei o que Ele vos disser!
E o que Ele diz é apenas isto:
“Amai-vos uns aos outros”

Maria indica o caminho de Deus. Proporciona o nosso encontro com Cristo. Ela, que tinha sido o sacrário do Filho de Deus, é também o altar do Seu filho. 
Já o tinha sido no princípio: é ela que apresenta o seu menino aos pastores, aos magos, a Simeão e a Ana, aos esposos de Caná. 
E depois, há a cruz. Aquele momento de carne-viva. Aquele instante de eternidade, em que um fio de amor faz o triângulo entre os olhares de Jesus, da Mãe e da humanidade inteira. Aquele instante que nos garantia o refúgio eterno no Imaculado Coração de Maria. 
De João: 
Neste texto, MÃE é a palavra mais importante. Em meia dúzia de linhas, o evangelista repete-a 5 vezes:  no princípio, Maria é a “sua mãe” – e só esta expressão aparece 3 vezes; depois, “disse à mãe”, assim, sem nenhum possessivo, quase como se a maternidade de Maria fosse esvaziada – o seu único filho estava a ser-lhe tirado. 
Jesus há de olhá-la com a ternura de sempre. Ele sabe que quando tudo se consumar, ela estará à espera do seu corpo para o tomar nos braços, mais uma vez, para o embalar pela última vez. 
Num terceiro momento, transfere a Maternidade -  Eis a tua mãe! - para João, para nós, numa espécie de  novo parto, de nova maternidade. 
Em nome dela, Maria é ajudada a depor aquela dor. Na hora da morte, Jesus pronuncia palavras de vida: diz MÃE, diz FILHO, e ajuda-(n)os a reatar o fio quebrado da existência. E pronto. Já não estávamos sós. Maria ficaria sempre connosco, mesmo nas horas da cruz. E do mesmo modo que ela embalou o seu filho morto, há de embalar-nos, a nós e isso ajuda-nos a ter um bocadinho de menos medo do escuro. 
Ela continuaria de pé, ao lado a minha cruz, das nossas cruzes de todos os dias, segurando as mãos que nos vão caindo, limpando as lágrimas que vamos chorando, cobrindo - nos com o céu do seu manto. Ela seria o nosso refúgio. 
No Evangelho da Alegria, O Papa Francisco volta a falar-nos da hora suprema da Nova Criação, em que Cristo nos conduz a Maria – ao olhar de Maria, ao abraço de Maria, à ternura de Maria, aos cuidados de Maria. A Mãe. E que esta imagem materna reúne todos os Mistérios do Evangelho: os da alegria, os da luz, os da dor e os da glória. E é sobre eles que meditamos quando rezamos o terço. É neles que temos de viver, quando desfiamos as contas da nossa vida.  
Isto volta a acontecer em Fátima. O mundo estava sem vinho. Em Fátima, O coração que Nossa Senhora mostra a Lúcia, na 1ª aparição, está cercado de espinhos. O verdadeiro cenário desses dias era o de um mundo em conflito, desesperançado, de um mundo em guerra. Uma mãe conhece a dor do filho. Uma mãe sabe quando o filho precisa de colo. E, nesse tempo, era preciso. 
Hoje, continuamos sem vinho. O mundo é um cemitério de cruzes. A nossa vida (o nosso coração) tem muitos mortos dentro. O verdadeiro cenário destes dias não é muito diferente do desse tempo…
Se a Senhora voltasse hoje, talvez dissesse exatamente a mesma coisa que disse no dia 13 de julho de há 100 anos atrás: “Se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão, e muitas almas terão paz”. 
Quando ela veio a Fátima, trouxe-nos recados do céu. Ensinou-nos o caminho: pediu Penitência – na aceitação da cruz do dia-a-dia, na construção da vida com os olhos postos em Deus; no esforço em sermos cada dia um bocadinho melhores; pediu-nos oração e as orações ensinadas em Fátima (por Nossa Senhora, pelo anjo e pelos pastorinhos) não são dirigidas a ela, mas a Deus: “Senhor, eu creio, adoro, espero e amo-vos” e peço-vos perdão”; pediu-nos mudança de vida. 
O  caminho mais curto e mais direto entre nós e Deus é Jesus. Primeiro nos braços da mãe. Depois nos braços da cruz. 
Maria deu à luz o Céu. E nós temos a obrigação de, por Ela, chegar mais perto de Deus. E podemos estar certos de que temos uma Mãe que nos acolhe – acolher é verbo de mãe”- com um coração imaculado onde há lugar para todos os filhos.  
Em 2010, a Imagem Peregrina esteve na Madeira. Por essa altura, escrevi isto:
Mãe, 
guardei o meu coração para te oferecer nestes tempos em que vieste visitar-me. Trouxe-te a luz dos caminhos, o canto dos peregrinos, o silêncio das noites. Trouxe-te o melhor de mim, apesar da vida e do tempo e do medo. Trouxe-te quem sou: às vezes sorriso, às vezes desespero, às vezes abraço, às vezes solidão. 
Vim, Mãe Santíssima, porque em ti encontrei a minha casa. Mesmo quando a noite me apagou a esperança, quando a dor me choveu nos olhos e me derramei no chão. Vim, Senhora de todos meus passos, porque sempre houve lugar para mim no abrigo azul do teu manto, na ternura branca dos teus silêncios, nas palavras caladas, guardadas na cruz do teu Filho.  
Senti-te à beira da minha cama, nos momentos de pedra; senti-te estrela, nas alturas de alegria; senti-te presença na hora das lágrimas. 
Por isso, só me resta colar os meus olhos aos teus, as tuas mãos às minhas e agradecer-te, da pequenez da minha humildade por nunca teres largado o meu coração. 
Senhora de Fátima, peço-te, hoje, aquilo que eu, no segredo de mim, pedia à minha mãe antes de dormir: Se eu me perder, encontra-me. Ámen.

Que, neste século louco e solitário, a gente aprenda com a Imagem da Senhora de Fátima a elevar as mãos para o céu, mas a pousar os olhos nos irmãos. E que nunca nos esqueçamos de que o Seu Imaculado Coração é refúgio e é caminho. Porque Maria, Senhora de Fátima e de nós, foi o primeiro sacrário e o primeiro altar de Jesus. Por Ela, chegaremos, de certeza absoluta, a Deus.
Graça Alves 
(Funchal – Fátima, abril de 2017)

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